Início Opinião Crônica CRÔNICA: QUANDO O INCÔMODO GANHA MAIS ESPAÇO…

CRÔNICA: QUANDO O INCÔMODO GANHA MAIS ESPAÇO…

As telas compõem a série “Profecias”, de 2018, de Randolpho Lamonier, e foram extraídas
do Instagram @carollinalauriano

João Vitor Pereira *

“Caro C,

peço que me perdoe por minha demora – estive abatida, à procura das palavras difíceis e das metáforas descabidas para evitar a parte física das urgências. Ah, meu amigo! Tão grande o esforço em me manter sóbria dentro desse jogo de arremessos político-sociais. Nos transformaram na batata da batata quente – um bando de homens-crianças, que não sabem perder, brincando com um saco de vidas. Nós, ainda, somos as batatas privilegiadas – nos deixam à espera, reservadas, nos escolhem depois, porque têm que lidar com as que sempre estiveram ali em suas mãos, queimando queimando queimando, e que agora queimam ainda mais – e tomo aqui todas as licenças inimagináveis pra comparar pessoas a batatas.

Tenho lido os memoriais virtuais também, nova rotina que me traz todas as ordens de arrepios e calafrios. As batatas têm nomes, afinal. Ao contrário de você, não os escrevo – eu digo os nomes. Eu grito os nomes. Eu e Clara, juntas, berrando os nomes. Sentindo na carne, no movimento seco, duro e lento dos lábios, no esforço prevenido da língua, os nomes. A força de todos esses nomes jamais há de caber dentro de nossas estruturas ósseas, na projeção dos nossos maxilares, em nossas finas, virgens e protegidas cordas vocais. Nós gritamos, sim; mas não conhecemos o grito. Tenhamos, pois, o esforço de aprender e de ouvir os nomes, os afetos dos nomes, as histórias e as tradições dos nomes. Que se não tivermos esse esforço, o novo normal será sempre o mesmo de antes.

Calemo-nos. Sintamos seus nomes.

Parei de escrever, também. Há corpos que não devem ser espremidos nessa nossa poética chula e desatenta, projetada desde o início para evitá-los. Insistimos demais nessa poesia apolítica e nem percebemos! Fingimos nossos tons sutis de posicionamento e o resto é o silêncio – ah! C, o privilégio da escolha do silêncio. Se insistirmos nessa arte estranhamente deslocalizada, estaremos fadados à falha contínua e sistemática.

Sei que isso tudo não é novidade alguma: nem para mim, nem para ti, nem para ninguém mais a que nos interesse. Mas o incômodo agora tem mais espaço. Temos um quarto de visita só para o incômodo. Ele se deitou lá e ali fica. Perambula pela casa de madrugada, range a madeira, brinca com essas tão antigas e tão brancas certezas…

Já nem sei – e percebo que sei cada vez menos sobre o não saber!

Tenho estado constantemente insone. Você diz que passou a madrugada vendo a rua, contando as luzes acesas, percebendo-se ainda mais míope. Eu fico atrás dos burburinhos políticos, estou sempre à espera das conspirações à espreita do status de fato, de decisão. O novo normal tem sido a impotência imaterial do virtual – que é ainda menos potente que a impotência da nossa tão querida democracia liberal! Recebemos a notícia absurda, os explícitos “matem os índios”, “abram a Amazônia”, “sou Messias, mas não faço milagre”, e estacamos. Se questionamos, a tréplica é ainda mais chula.

Não sei mais o que fazer. A psiquê em crise! Fugimos para as artes, mas que artes é que são essas? Entre a overdose e a abstinência, das informações ao entretenimento. Tenho estado mais soturna também, mais caótica, meio perturbada, e não vou fazer nada em relação a isso – não por enquanto. A loucura é política, bem sabemos. Clara não gosta muito de como tenho agido, vem toda pelas beiradas com as explicações astrológicas. Mercúrio retrógrado pelo ano inteiro! Daqui a pouco convenço-a também à desordem branca. Tenho me esforçado em desaprender essas nossas referências ultrapassadas. De que nos valem? Como se nosso discurso já não fosse o discurso validado, meu bem.

O futuro precisa da inconstância, da certeza do caos instituído na nossa pele branquíssima, nos dados elitizados, nos números alvíssimos, nos corpos privatizados. Que fique a nosso dispor o nosso caos, e não à barbárie nem ao capital. Fiquemos pelo esforço da elaboração – apesar de sabermos que ainda sentiremos por muito tempo em nossas bocas mal-acostumadas o gosto do passado, como tantos são os que o sentem há séculos. Fiquemos pelo empenho do esforço, pelo desaprendizado.

Quanto aos sonhos… não tenho sonhado. Que meus sonhos retornem ao meu corpo quando houver tempo e prazer em sonhá-los, C. Enquanto acordados, sejamos esforçosos, carnais e mais atentos aos corpos pretos, indígenas, trans e marginalizados. Ouviremos os nomes. Diremos os nomes. Aprenderemos os nomes. E não há nada de novo nisso – jamais nos enganemos! jamais nos deixemos enganar; pois toda a novidade que nasce em nossas ideias já é ultrapassada, já é urgente. Percebamos nossas manias e nossas obsessões vazias – tomemo-las nas mãos, nas palmas mesmo, e dissequemo-las, pois temos e teremos o privilégio do tempo. Não hão de conter tamanha substancialidade como tanto profetizamos em nossos poemas, mas… isso ainda não há como sabermos.

O privilégio da espera, da surpresa! Que não morreremos, pois nosso corpo não conhece a queda, não nos falta o ar. Também não levaremos um tiro – muito menos 80. E jamais haverá nada de novo nisso.

Um, como sempre, desconfortável abraço apertado – infelizmente ainda imaterialíssimo, mas, mais que nunca, anti-virtual – de sua amiga,

Jade.”

* É estudante de Psicologia da UFSJ e produziu este texto sob a orientação do professor Paulo Caetano, numa ação do projeto Observatório da Saúde Coletiva – UFSJ.

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