Início Cultura Espaço ArteLetra ESPAÇO ARTELETRA: RHINOCEROS, DO ESCRITOR MARCÍLIO FRANÇA CASTRO

ESPAÇO ARTELETRA: RHINOCEROS, DO ESCRITOR MARCÍLIO FRANÇA CASTRO

Rhinoceros

Foto: Lívia Arnaut

Marcílio França Castro*

O rinoceronte é aquela criatura que nunca conseguiu sair da fábula. Poucos de fato o viram. Há séculos habita mundos afastados, contam histórias duvidosas sobre ele. Quando alguém o descreve, é de modo infiel. Na Antiguidade já o confundiam com o unicórnio, e o elefante seria seu inimigo capital. Heródoto e Plínio o mencionam rapidamente. Talvez tivesse crina vermelha e corno espiralado, segundo uma nota de Eliano. Uma poção feita do seu chifre, combinada com uma taça de vinho, preveniria a epilepsia e anularia os venenos – isso é o que se lê em Ctésias de Cnido. Os relatos passam de um comentarista a outro, cada qual copia e muda o anterior. Nos bestiários medievais, o rinoceronte surge ao lado de grifos e centauros e continua associado ao unicórnio; os elementos que vêm dos antigos se recombinam em histórias cristãs. O animal é indômito, mas a nudez de uma virgem pode acalmá-lo. Algumas alegorias simplórias o tornam símbolo de Cristo.

No início do século 16, em Nuremberg, Albrecht Dürer grava em xilogravura seu famoso desenho de um rinoceronte. Sem perder os traços fantasiosos, a representação investe no realismo, mas, de certo modo, acaba autenticando uma tradição mítica e fantástica. Trata-se, como se sabe, de um desenho de segunda mão, feito com base em relatos sobre um animal vindo da Índia e recém-desembarcado em Lisboa, como presente do sultão Muzafar II para Manuel I, rei de Portugal. O rinoceronte de Dürer tem o corpo robusto e vivo, a impressão de concretude é imediata. Parece vestido com uma espécie de jogo de armaduras, placas com textura de coral que se encaixam como conchas sobre o lombo do bicho. Um pequeno chifre torneado aponta quase no cangote, as patas são escamosas, a extremidade do dorso é serrilhada. O luxo dos detalhes deve ser a chave da hipnose provocada pela figura. Se os sonhos costumam ser lembrados aos pedaços, se algo neles sempre é turvado ou falha, o rinoceronte de Dürer chega como um sonho inteiro, de verdade incontestável, e talvez esteja aí a razão do seu fascínio. Se Dürer tivesse visto o animal, não construiria uma imagem tão poderosa.

Imagem: Albert Dürer, Rhinoceros, 1515

“Hoje, se uma criança pergunta como é um rinoceronte, a resposta será nebulosa. Afinal, quem vai negar a ele, além de toda a sua extravagância, uma couraça preciosa que o proteja de seus matadores?”

A ilustração de Dürer seduziu os naturalistas durante séculos – provavelmente até hoje deliram com ela. Parece ter resistido ao método, à taxonomia, aos rigores e obsessões da ciência. Talvez possua um encanto emanado do próprio bicho, de seu caráter indomesticável, que se estende ao imaginário que o construiu. Hoje, se uma criança pergunta como é um rinoceronte, a resposta será nebulosa. Afinal, quem vai negar a ele, além de toda a sua extravagância, uma couraça preciosa que o proteja de seus matadores?

Em março de 2018, morreu no Quênia o último macho dos chamados rinocerontes-brancos-do-norte. Em seus dias derradeiros, permaneceu cercado por guardas, ainda na defesa contra caçadores, esperando. Várias fotos documentam o trânsito para a extinção. Em uma delas, a cena é de uma campina aberta, sem casas, sem cercas, sem árvores. O animal está inerte, com a cabeça baixa, alheio aos três homens que o vigiam. Um deles, com a espingarda em uma das mãos, afaga o pescoço do rinoceronte com a outra. O céu é de fim de tarde, com uma pincelada de nuvem. Não há mais nada na face da Terra. A melancolia está ali – mas não apenas porque se assinala o fim de uma espécie, ou porque se captura a solidão de uma era no olhar de um único indivíduo. A melancolia está ali, e sobra, porque na sua crueza, na sua limpidez, a imagem subtrai toda a imaginação, as fabulações que sempre impregnaram a criatura. Sem mágica, sem pó, sem escamas. Você olha o rinoceronte e sabe que, quando o corpo dele tombar, o que te resta é apenas acreditar naquela fotografia.


(*) Marcílio França Castro é escritor. Entre seus livros, estão Histórias naturais (Companhia das Letras, 2016) e Breve cartografia de lugares sem nenhum interesse (7 Letras, 2011), que venceu em 2012 o prêmio da Biblioteca Nacional e acaba de ser traduzido para o espanhol pela Editora Uniandes, de Bogotá.

Espaço ArteLetra

O Espaço ArteLetra é um ambiente de divulgação e circulação de produções artísticas e
literárias, em particular de produções contemporâneas nacionais. Este Espaço de exposições
tem como um dos principais objetivos apresentar projetos diversificados, incentivando a
participação de novos artistas e contemplando diferentes suportes e linguagens, que tanto
dizem da cena atual.

Uma das intenções do Espaço ArteLetra é aproximar o público de um amplo conjunto de
obras, estimulando o acesso e consumo de arte. Ao trazer essas produções para o espaço
privilegiado do Notícias Gerais, queremos suscitar novos diálogos e questões latentes da nossa sociedade, contribuindo para a formação de público e troca de experiências.

O palíndromo ArteLetra, formado pelo espelhamento quase perfeito das palavras “arte” e
“letra”, apenas ressalta a característica híbrida das produções contemporâneas, e a estreita
relação entre as artes, palavras e mídias. Esse laço é aqui uma representação das nossas
relações, da maneira como nos correspondemos, e do reconhecimento de que as
manifestações culturais nos tornam mais próximos, ainda que cada qual com seu olhar.

O Espaço ArteLetra mantém um calendário regular, sendo a cada semana um/a novo/a artista
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Deborah Castro, curadora.
arteletra.ng@gmail.com

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