José Domingues de Godoi Filho*
Nos últimos quarenta anos, para defender uma universidade pública, autônoma, gratuita, laica e democrática, foram realizadas mais de uma dezena de paralisações, por docentes, discentes e técnicos-administrativos. Paralisações que chegaram a atingir mais de quatro meses. Todas repostas integralmente, sem nenhuma balbúrdia ou plantação de papoulas, cogumelos ou canabis.
Então, por que de tanta pressa para aprovar o que estão denominando de “flexibilização, em caráter excepcional e temporário, do desenvolvimento de estratégias de ensino-aprendizagem por meio de Tecnologias da Informação e Comunicação em substituição às estratégias presenciais para o Ensino de Graduação”?
As propostas que estão sendo “articuladas” e analisadas pelas universidades públicas são tão pornográficas que faria o cartunista Carlos Zéfiro (aquele dos gibis de “catecismo sexual”, dos anos 60) e a escritora Adelaide Carraro (textos “eróticos”) ficarem ruborizados.
Com as polêmicas, mercantilismo, interesses escusos e desgastes da EaD, as propostas são apresentadas escondidas por detrás de outros termos como, por exemplo, “flexibilização” das aulas presenciais para o ensino de graduação. Para mitigar os estragos, sugerem que a “flexibilização” será em “caráter excepcional e temporário”, o que só reforça a lembrança dos gibis de “catecismo” de Carlos Zéfiro, que, com estratégia semelhante, indicava como utilizar três grandes mentiras (por motivos óbvios, não dá para serem contadas nesse) para convencer a namorada e, assim chegar aos intencionados objetivos.
Com tal ressignificação, tentam esconder a ameaça que ronda o ensino superior público e o trabalho docente; o que já vem ocorrendo e sendo minado desde muito tempo antes da pandemia, para atender os interesses de grandes grupos educacionais mercantis com foco exclusivamente empresarial e no lucro. A educação se tornando mais uma “commodity”. A pandemia apenas está permitindo e facilitando a realização de experimentos em todo o espectro educacional, do ensino superior ao básico. Assim, a “flexibilidade” será aplicada crescentemente na estrutura física da universidade (por que cidades universitárias?), na exploração do trabalho docente (por que carreira e estabilidade?) e nos currículos, que em muitos casos já estão defasados e distantes do que se espera de um profissional para os próximos anos. Uma discussão que não tem merecido a atenção das diferentes instâncias de decisão das universidades. Afinal, a preocupação do MEC e do capital é que sejam formados (ou adestrados nas escolas civil-militar) profissionais acríticos e adaptáveis aos seus interesses.
A insuspeita The Economist (1), em seu editorial dessa semana, defendendo os interesses do cassino global e dos empresários, conclama a volta as aulas com “cuidado”, colocando a ciência contra os cuidados com a saúde. Nem o Covid-19, quase levando a óbito o primeiro ministro britânico, serviu para sensibilizar.
O mesmo caminho foi o escolhido pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), em 28/04/2020, quando, praticamente, desconsiderou, em suas indicações, as consequências nefastas da pandemia e a falta de recursos financeiros para educação, em todos os níveis. Sem falar no congelamento de reajustes salariais por mais dois anos e nos R$ 1,2 trilhões doados aos bancos. E a pandemia? Só um detalhe para ornamentar o texto.
Na contramão, o The Wall Street Journal(2) noticiou, em 29/04, que a capital Washington, D.C., assim como partes da Georgia, Texas, dentre outras regiões, após tentarem a “flexibilização” das aulas presenciais, interromperam as atividades e anteciparam o fim do período acadêmico, após verificarem que havia muita desigualdade social e muitos estudantes estavam ficando para trás – nem todos os estudantes possuem acesso à internet. Também o Le Monde(3) divulgou a posição que o ministro da Educação da França, Édouard Philippe, apresentou à Assembleia Nacional, onde reconheceu que a “flexibilização”, também na França, deixou muitos estudantes pelo caminho em função das desigualdades. E, ficou, em aberto, para os parlamentares, algumas questões, tais como: – “Quem voltará às aulas? Para fazer o que? Por quanto tempo? E em quantos estabelecimentos?”
O que dizer, então, que ocorrerá no Brasil com suas enormes desigualdades socioeconômicas, se adotada a “flexibilização”? E nas universidades federais, onde a pesquisa da Andifes-2019 apontou que “70,2% dos estudantes das federais brasileiras são de baixa renda, com renda familiar per capita de até 1,5 salário mínimo por mês”. E, no outro extremo, “estudantes com rendimento maior que dez salários mínimos, não chega a somar 1% do total”.
Os riscos envolvidos não são poucos e as possíveis consequências para a educação pública enormes em todos os aspectos, sejam didáticos, pedagógicos, econômicos, institucionais e profissionais. O lucro ficará com os de sempre. Para tanto, no final de março, capitaneada pela Unesco (4), foi lançada a Coalizão Global de Educação com “os objetivos de propulsionar, no curto prazo, a utilização de tecnologias de aprendizagem remota (grifo meu, para esconder EaD) e, no longo prazo, consolidar o uso de tecnologias de educação nos sistemas regulares de ensino”. A coalizão envolve, além da Unesco, o Banco Mundial, OCDE, ONU, OMS, Unicef, OIT, grupos empresariais (Microsoft, Google, Facebook, Zoom, Moodle, Huawei, Tony Blair Institute for Global Change, Fundação Telefônica, GSMA, Weidong, KPMG, dentre outros) e organizações filantrópicas, sem fins lucrativos, como Khan Academy, Dubai Cares, Profuturo e Sesame Street.
A OCDE(5), membro da Coalizão Global de Educação, identificou em 98 países o óbvio, que os recursos mais usados durante a pandemia são, entre outros: Google, Google Classroom, Google Suite, Google Hangout, Google Meet, Facebook, Microsoft one note, Microsoft, Google Drive/Microsoft Teams, Moodle, Zoom, Youtube.
A partir de suas pesquisas, a OCDE recomendou a criação de comitês locais ou força tarefa que fique responsável por coordenar a implementação das estratégias em resposta à pandemia. O trabalho deste comitê deverá ser organizado prevendo duas etapas. A primeira objetivando completar o ano acadêmico e concedendo ênfase a “competências socioemocionais como resiliência e auto eficácia”. A segunda considerando o próximo ano acadêmico, principalmente, se ainda não houver uma vacina contra o Covid-19 e o afastamento social continue necessário.
E no Brasil, não aconteceu nada? Como não podia deixar de ser, na semana seguinte, os sanguessugas, comandados pela “ONG” oficial de empresários da educação intitulada, Todos Pela Educação – TPE, coordenou, uma reunião com a participação do Conselho Nacional de Educação, Undime, Consed e representantes do Banco Mundial, para atenderem o indicado pela OCDE e outros organismos internacionais. Como justificativa, a necessidade de se discutir pontos centrais da Medida Provisória nº 934, de 01/04/2020, que estabelece normas excepcionais sobre o ano letivo da educação básica e do ensino superior decorrentes das medidas para enfrentamento da situação de emergência de saúde pública de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, isto é, da “flexibilização” das aulas presenciais.
Não há na ampla maioria das universidades públicas acúmulo de discussões sobre a questão e, não será sob a pressão de interesses mercantis do MEC e dos empresários da educação, numa conjuntura de pandemia, que serão aprofundadas e tornadas maduras as decisões. Sem contar as limitações que as reuniões à distância (ou “lives”) têm demonstrado.
Se não bastasse, a voracidade em atender os interesses de entidades mercantis da educação e se curvar frente aos desmandos do atual ministro, até os atos produzidos pelo próprio MEC estão sendo divulgados em papel timbrado da Abmes. Importante salientar que a Abmes – Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior, fundada em 1982, “é a entidade que representa o ensino superior particular e atua junto ao governo e Congresso Nacional pelos interesses legítimos das instituições educacionais, mantendo seus associados sempre informados, em primeira mão, sobre as principais diretrizes e conquistas para o setor”.
A pandemia não pode, em hipótese alguma, ser utilizada para descompromissar ainda mais as obrigações do Estado com a educação, em especial com o ensino superior brasileiro, que vem sofrendo enormes ataques. Muito menos servir de trampolim para o que quer que seja e para quem quer que seja.
O que as universidades públicas devem aprovar, como proposto por várias entidades e fóruns de opinião, é : – a discussão da reorganização do calendário 2020 em conjunto com o de 2021, após o retorno seguro e liberado pelos respectivos comitês de saúde, sem qualquer substituição de atividades desenvolvidas por EaD, flexibilização de aulas presenciais ou ensino remoto para integralização da carga horária dos diversos níveis e modalidades; debater rigorosa e aprofundadamente os currículos e a formação profissional, nos diferentes cursos oferecidos pelas universidades, tendo em vista a evolução das profissões e suas atribuições frente às demandas da sociedade para os próximos pelo menos quinze anos.
Não podemos permitir mais esse golpe contra a universidade e a educação pública no Brasil. Mais do que em outros momentos nos últimos quarenta anos, temos que lutar pelo sonho que nos trouxe até aqui, isto é, a defesa de uma universidade pública, autônoma, gratuita, laica, democrática e socialmente referenciada.
NOTAS
(1) The Economist. Covid-19 and the Classroom. Open School First. May 02, 2020.
(2) Tawnell D. Hobbs. Some School Districts Plan to End the Year Early, Call Remote Learning too Tough. April 29,2020. The Wall Street Journal – https://www.wsj.com/articles/some-school-districts-plan-to-end-the-year-early-call-remote-learning-too-tough-11588084673
(3) Mattea Battaglia. Un retour à l’école progressif et incertain après la fin du confinement lié au coronavirus. Le Monde, 29 avril 2020. https://www.lemonde.fr/education/article/2020/04/29/un-retour-a-l-ecole-progressif-et-incertain-apres-la-fin-du-confinement-liee-au-coronavirus_6038105_1473685.html
(4) UNESCO. Global Education Coalition for COVID-19 Response. https://en.unesco.org/covid19/educationresponse/globalcoalition
(5) OCDE. A FRAMEWORK TO GUIDE AN EDUCATION RESPONSE TO THE COVID19 PANDEMIC OF 2020. https://www.hm.ee/sites/default/files/framework_guide_v1_002_harward.pdf
* José Domingues de Godoi Filho – Professor da Universidade Federal de Mato Grosso/Faculdade de Geociências